Epilepsia: A perspectiva de quem lida com a doença sem a ter

segunda-feira, agosto 14, 2017
        Faz esta madrugada uma semana que assisti a mais uma crise do Pedro. A terceira desde que vivemos juntos. Não havia nada que indicasse que iria ocorrer, ao contrário do que costuma acontecer, no caso dele. Mas mesmo assim aconteceu. Quando algumas pessoas ficam a saber da sua doença, agem com ar de choque. Dizem que não saberiam o que fazer estando sozinha, a lidar com ele nesta situação, como eu. É a pensar nestas pessoas que hoje decidi escrever este texto. Mas também para todos os "Pedros" que possam estar por aí desse lado. É que epilepsia não é nada da outra galáxia, nem sequer custa nada ajudar, até porque não há muito a fazer. Procurem informar-se. Quem olha a caras, não vê epilepsia e não sabem se vão ser vocês a precisar de ajuda um dia, por isso procurem saber o que fazer para ajudar ao invés de fingir que a doença não existe.
 
       Não me deram cursos de primeiros-socorros na escola. De casos de epilepsia lembro-me vagamente de uma rapariga que uma vez caiu na escola, mas nem percebi bem o que se passou, já que todos fizeram a típica roda e nem vi o que se passou ali. O meu pai também teve epilepsia quando era novo, depois acabou por passar. Ouvi falar da doença somente. Depois conheci o Pedro e tudo mudou. Mudou para mim, mas acho importante, não só por ele, como para todos os que lidam com esta doença, que mude para mais pessoas. Não é uma doença contagiosa, não é algo alienígena, não é um ser possuído. É só epilepsia! Os médicos ainda a estudam, por ainda muito desconhecerem da doença, por vezes. Assim, torna-se importante a troca de ideias e de experiências com quem tem o mesmo problema. A opção é juntarem-se a um grupo. Compreendo que o Pedro não queira ir. É quase como se juntar aos alcoólicos anónimos. Não é assim tão bom expores algo tão íntimo a pessoas que nunca viste e cingir-te a falar de um tema que em tanto tempo te foi tabu. Nós vimos uma segunda opção: escrever no blogue. Procurar outras pessoas que passem pelo mesmo e partilhar essas experiências. Quem sabe não estaríamos a ajudar outras pessoas... Foi assim que estas publicações começaram.

        Hoje escrevo-vos este texto e desde o título que penso em vos contar como descobri que o Pedro tinha epilepsia. Estávamos juntos, com outros amigos, numa casa de férias, e ele ficou acordado até ao amanhecer. Como já vos contou, a epilepsia dele tende a desenvolver-se com a ausência de uma noite bem dormida. Assim, com o sol veio também o início de espasmos. Portanto, de uma noite muito romântica de conversas atrás de conversas (porque ainda nem namorávamos oficialmente!), surgiu algo que ainda hoje não consegui esquecer. Não, não foram os espasmos! Foi o olhar da morte que ele me lançou. Ele só queria dormir e esconder que tinha esta doença. Eu só queria que ele estivesse bem... mas também queria que ele continuasse a gostar de mim. Afinal, eu nem percebi bem o que fiz para levar com aquele olhar de "sai daqui já! Nunca mais olhes para mim" ou algo pior que isto. Ele adormeceu. Eu continuei acordada. Só queria perceber aquele olhar. Quando ele acorda, conta-me que aquilo eram espasmos e que ele precisa de dormir para não ter um ataque de epilepsia. Conta-me que é por isso (e por não gostar também) que não bebe álcool, e que esse é o motivo dos comprimidos que toma à noite. Conta-me que prefere esconder a doença por acontecimentos do seu passado, por algumas pessoas não terem sabido reagir. Conta-me que teve medo de me contar. Nisto eu respondo algo na linha do "Aaaaah! Assim fico muito mais descansada. Ainda bem que é só isso. É que me lançaste o olhar da morte e eu pensei que já nem me querias ver mais". Ele riu-se e tenho certeza de que foi ali que percebeu que era mesmo só epilepsia. Eu percebi ali que o olhar mais assustador que recebi em toda a minha vida, não era para me desejar mal, antes pelo contrário: surgiu por medo de me perder. Isso só me juntou mais a ele.

        Nunca percebi muito bem os complexos que parecia ter com a doença. Para mim parecia-me algo simples. Tudo bem, teve um mau acontecimento com uma pessoa a não saber reagir. Mas e então? Isso tem que estabelecer como será o futuro?! Para mim nunca fez sentido. Até que no trabalho, nas amizades e agora até pelas redes sociais e blogue o tema começou a ser abordado. Agora ele já percebeu que não é assim tão grave, que não tem que ter medos de se expor. Percebeu que pode ajudar outras pessoas com o mesmo problema, e que pode ser também ajudado por elas. Nisto, eu também percebi de onde vieram os medos iniciais. 

       As pessoas tendem a afastar-se do desconhecido. Tendem a temer o que não conhecem. A epilepsia é das doenças que menos se conhece, que menos se controla, em termos de crises. Por isso mesmo causam muita estranheza e só quem tem a doença ou está perto de alguém que tenha é que procura informar-se. Mas se nenhum de nós está livre de também a ter, se é algo tão simples, ainda que tão desconhecido, então por qual razão teremos que ter medo e fugir? Qual o motivo para andar escondido?!
       No outro dia um amigo nosso disse-me (e agora deve estar a rir-se ou a levar menos a bem o que aqui vou escrever, mas tenho mesmo que escrever!): "Telma, achas bem levares o Pedro a se expor desta maneira no instagram?". Na altura só soube responder que já me devia conhecer e que jamais era capaz de fazer algo que o Pedro não concordasse ou não partilhasse da opinião, tendo em conta que é uma exposição dele e não minha. Mas trata-se de muito mais do que isso. "Se fosse eu preferia não estar exposto. Ele tem muita coragem." Sim, eu sei que ele tem. Tenho mesmo muito orgulho nele. Ele enfrenta a vida agarrando-a pelos cornos (sim, não há meio para usar linguagem bonita aqui). O que eu não acho bem é que um amigo dele de há anos não tenha percebido que não é nada de extraordinário. Não há motivos para se esconder. Há, sim, motivos para se expor e fazer entender aos olhos de todos que é mesmo só epilepsia.

        No meio de todo este testamento era só isto que queria que retivessem: É SÓ EPILEPSIA!



Para saberem como ajudar, sigam a saga #QuemVêCarasNãoVêEpilepsia: o início foi aqui.  



13 comentários

  1. Gostei muito do post. Informativo e bem-escrito. Nisto concordo com a Telma, não é exposição, é desmistificação. Não há que esconder ou ter vergonha de nada, mas há que aprender a lidar com a situação.. E acredito que deva ser assim mesmo com todos os problemas de saúde. É importante espalhar a palavra, porque nunca sabemos o dia em que vamos ter que lidar com algo deste género!

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    1. Mesmo! Somos totalmente da mesma opinião! Muito obrigado! :D
      Também nos ajudas a espalhar a palavra e isso conta muito para nós. Muito obrigado!

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  2. Os cinco minutos mais bem perdidos da minha manhã ! Acho que fizeste muito bem em abordar esta questão Telma.
    Vais assim poder ajudar outras pessoas que tenham medo ou simplesmente receio de dizer que sofrem de epilepsia.
    Beijinho

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    1. Muito, muito obrigado por nos ajudares a tentar ajudar. A desmistificar. Esperamos que continues a perder bons tempos por aqui...

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  3. Adorei esta publicação! É isso mesmo! Não é nada de mais e as pessoas complicam tudo. Devíamos de deixar os medos e preconceitos de lado e saber todos como agir com estas e outras doenças, com crises de pânico e coisas assim. Pode ser um amigo nosso, alguém conhecido que passe por algo e que apenas nós o possamos ajudar e ter conhecimento dessas coisas pode fazer muita diferença. Infelizmente ainda existem muitas pessoas que só pensam na aparência de tudo (da vida, das pessoas, etc..) em vez de ligarem ao que realmente importa. É rara a pessoa que hoje em dia não tenha uma doença ou uma condição diferente dos outros, cada vez é mais raro haver pessoas totalmente saudáveis. E por isso mesmo devia de haver mais conhecimento nestas áreas e não o contrário.

    www.ayellowrain.blogspot.com

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    1. Completamente! É contra isso que combatemos. É isso que queremos fazer desvanecer. Obrigado por nos ajudares a tornar este mundo num lugar melhor! :)

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  4. Muito bom, o post! E extremamente informativo!
    Obrigada pela ''desmistificação''
    Beijinhos
    Joana
    https://curlyhairandlipsticks.wordpress.com/

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    1. Muito obrigado nós por a teres lido e percebido que é importante desmistificar e ajudar! :)

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  5. Acho este post tão importante. Acho que ainda existe muito diz-que-disse em torno desta doença. Grande parte das pessoas reagem como se fosse uma doença contagiosa, em parte, penso eu, porque não sabem como reagir a um ataque e porque não sabem o suficiente sobre o assunto. Esta vossa campanha, utilizando o blogue para desmitificar tudo o que ronda a epilepsia, é das mais importantes que já vi na blogosfera portuguesa, não só para quem tem esse problema, mas também para quem não o tem e precisa (deve!) saber mais sobre ele.

    Continuem com o excelente trabalho e é como dizes, Telma, o Pedro não tem com que se preocupar e as pessoas não têm que criar um grande alarido em torno disso. É só epilepsia, e não há que ter vergonha nisso :)

    Beijinhos,
    SHE WRITES

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    1. Muito obrigado por nos ajudares nesta batalha! Obrigado por receberes a mensagem e nos fazeres ver que vale mesmo a pena continuar! Havemos de conseguir ajudar cada vez mais pessoas apenas por desmistificar a doença, que não é mais do que uma doença simples, como qualquer outra.
      <3

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  6. Como eu bem sei o que é epilepsia! Cá por casa, tenho que lidar com uma pessoa que tem uma forma mais grave da epilepsia (uma doença rara chamada Síndrome de Lennox-Gastaut, que se faz acompanhar de um atraso no desenvolvimento cognitivo e emocional). E, acreditem, é chocante ver como ainda nos dias de hoje as pessoas não sabem lidar com pessoas epilépticas, que pensam que mal começam o ataque, é necessário enfiarem a pessoa nas urgências do hospital (quando, na verdade, o que é necessário é estar ao lado da pessoa e garantir que a mesma não bate com a cabeça em lado algum, ou ajudá-la a estar numa posição mais confortável e espera que a convulsão passe).

    O que vocês estão a fazer não é expor o Telmo, ou, pelo menos, não o estão a fazer em vão. É um contributo bastante importante para todos, pois quando tive uma formação de primeiros socorros, não conseguimos que alguém desse um testemunho na primeira pessoa, muito menos de quem está do outro lado a prestar assistência a alguém com esta doença, que afeta cada vez mais pessoas. Continuem a fazer este bom e importante trabalho! Porque a epilepsia não é, afinal, um bicho feio como muitos pensam :) Beijinhos aos dois!

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    1. Expor o Telmo era uma junção de Pedro e Telma? ahahah Foi só a brincar, percebemos perfeitamente o que dizes. Iremos lutar sempre por isso. Por todos os que estão relacionados com esta doença ou derivadas. Não têm culpa de a ter. Não há razão para seres descriminados.
      Muito obrigado por teres partilhado a tua história connosco. Dá-nos ainda mais força para continuar! Força também para vocês e um grande abraço apertado!

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    2. Sim, era mesmo a junção de ambos, eheh :) Porque, no fundo, são os dois que estão a expor a história! Muita força! :)

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